14 outubro, 2008

A poesia a serviço do mundo real

Fabrício Carpinejar é um dos meus escritores favoritos. Acompanho com frequência o seu blog. De uns tempos pra cá, ele começou a prestar um "serviço público", respondendo cartas e emails de leitores acercas de problemas pessoais. E esse é mais um site que merece ser acompanhado.

Consultório poético

Alguns trechos das últimas cartas:

Ele me traiu duas vezes com a mesma amante

"O amor é mundano ou é santo.

O mundano é o que não atravessa nenhuma tempestade para se definir santo. É a brisa dos costumes. Afirmação alinhada à concordância. Não teve nenhuma crise, nenhum estremecimento sério, para testar suas contradições.

Sem incoerência, não há amor santo. O amor é uma incoerência coerente somente aos dois envolvidos.

No santo, quem ama está terrivelmente sozinho, contra a opinião da maioria."


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O piloto-automático do casamento

"A felicidade enjoa.

Sem escolhas é como se o dia-a-dia fosse emprestado. Criou, portanto, uma encruzilhada para tudo parecer mais verdadeiro, mais dramático, para readquirir o direito de optar e decidir.

Tampouco é o segredo ou a vida dupla que a atormenta, é o excesso de domínio do casamento. O flerte é uma forma de sair do combinado, do estabelecido, da expectativa. Remodelar o impulso. Discutir as certezas anteriores. Redescobrir o prazer de não controlar o prazer.

Veja seu marido: demonstra uma amizade conhecida, com respeito e entendimento fácil.
Disse entendimento, não cumplicidade. Ele é receptivo às suas queixas. Tanto que procurou terapia. Vocês estão juntos pelo contexto: família, negócios, lembranças comuns. Mas cansou de decorar as respostas. A facilidade conjugal a irrita. O que a leva para o outro lado é a paixão. Não ter posse do que acontecerá: não prever se vai transar ou não no próximo encontro com o namorado, prolongar uma clandestinidade que a excita e a põe em movimento na dúvida e na crise de identidade.

(...)

Não ter ido para a cama com o rapaz não diminui o impasse, só faz aumentar a curiosidade por aquilo que não se viveu. A dignidade não é o problema, e sim se pode ser tão feliz dentro daquilo que já a tornou feliz algum dia. Apesar de não acreditar nisso, a felicidade pode se repetir. E sua repetição é aprofundamento.

Não gosta da previsibilidade. Em seu raciocínio, é ladainha monótona e morna. Projeta no marido sua necessidade de mudar (sua falta de ânimo é dele, seu marasmo é dele, os problemas de relação são dele). Não assumiu parte da dívida.

(...)

Tanto o homem e a mulher se esforçam prodigiosamente para o amante, armando encontros impossíveis e articulando horários inacreditáveis, porém não são capazes de se esforçar nem um pouco para manter o casamento. Deixam no piloto-automático e culpam o poste pelo acidente."


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E aqui, o novo texto do Carpinejar, publicado no blog.



RECONCILIAÇÃO
Arte de Gustav Klimt

"O canalha tem o apetite tanto para a conversa quanto para o sexo. Na mesma proporção. A conversa é o único acesso que o leva ao sexo selvagem.

Conversar antes do sexo é nossa possibilidade de melhorar a transa. Conversar depois do sexo é nossa capacidade de piorar a transa.

Repare que homem quando fala demais depois de trepar é porque broxou. Homem só se dispõe ao desabafo no fracasso. Ele fuma as palavras para manter sua reputação ereta, já que não conseguiu dominar o espírito.

Quando satisfeito, abraçará o silêncio, como uma camisa gasta e valiosa. Não reclame do ronco do marido, do namorado. Homem feliz sexualmente ronca de tanto silêncio acumulado.

O canalha não liga para o primeiro encontro, a delícia do primeiro encontro. Deixa os começos para os cafajestes. Ele é alucinado pelas reconciliações. Talvez isso explique sua paixão paradoxal pelo casamento.

Reatar um amor é mais trepidante do que iniciar um amor. Conquistar novamente uma boca que não o quer mais, decidida a desaforá-lo, tem mais suspense do que conhecer uma boca. A despedida humilha a estréia. Erótica pela necessidade de uma resposta urgente e agora. Transferir o nervosismo de fazer as malas para desfazer a cama.

A tensão favorece a nudez. Um abraço não é mais um abraço, mas um choque de seios contra seu peito. Visceral, um quadro sem moldura.

Canalha que é canalha não fugirá de discutir o relacionamento ou ter um papo sério. É o primeiro a sentar. É no desentendimento que cresce. Na argumentação. Nas ofensas gritadas, choradas, quando os gatos da garganta enlouquecem os telhados.

Briga boa é feita na cozinha, com copos, pratos, facas e garfos à disposição. Com um repertório de armas nos armários.

Quando a relação está por um fio, quando tudo está contra ele, todas as evidências, ele renasce e não aceita o desespero. Acostumado a viver de sustos, não entra em pânico. Está em seu território movediço, em seu escritório de verossimilhanças: transformar desculpas inacreditáveis em versões realistas, formular enredos para coincidências, fundamentar acasos.

Enquanto muitos escapam na hora de dar explicações, o canalha estende a toalha da mesa para a discussão. É o filho do inquérito. Não se precipita, seguirá seu improviso. O ultimato é uma garrafa de champanhe - é preciso tempo para gelar. Champanhe quente é a pior ressaca que existe. Casais não têm paciência para o congelador no momento da raiva, o canalha tem.

Conhece o corpo feminino para entender que as defesas vão terra abaixo na arena. Diferenças se esfarelam na fogueira.

Beijo brigado supera o beijo inocente. Beijo desculpado é a suprema carícia da língua."

Um comentário:

Anônimo disse...

Sou suspeita para falar do Carpinejar mas, mais uma vez, ele acertou em cheio com suas palavras.
E você também acertou em cheio, na escolha dos trechos destacados ;)