31 julho, 2007

Começo a conhecer-me. Não existo...


Foto: Karina Bertoncini
Título: Um conto, um canto
Fonte: Olhares.com


"Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
ou metade desse intervalo, porque também há vida...
Sou isso, enfim..."

Álvaro de Campos

19 julho, 2007

Mon Animal


Foto: Joaquim Filipe
Título: A musa
Fonte:
Olhares.com

"Eu a vejo quase todas as manhãs. Não é exatamente bonita. Aliás ela é de uma feiúra estranha como se carregasse uma boniteza espalhada em si, nos gestos e não nos traços exatamente.
Não importa. Importa é que a vejo acompanhada perenemente pelo seu cão.
Um pastor alemão com cara de bom companheiro. E o é. Eu vejo.
Olha-a muito, encaixa seu focinho entre os joelhos dela, brinca com ela, gane querendo dengo.
Ela também, essa minha vizinha de uns quarenta e vividos anos, brinca de não-solidão com esse cachorro específico; gosta dele, ri:
"Não Duque, assim não, deixa o moço",
"Duque, me espere. Não vá na minha frente assim",
"Cuidado com o carro, menino". Ele a olha como quem agradece.

E vão os dois, não em vão, pelas ruas de Copacabana sob o sol, felizes que só vendo. Eu vejo.
Ela é camelô; nos encontramos no elevador e eu:
- Vocês se divertem tanto, é tão bonito.
- É, nos conhecemos na rua. Ele olhou pra mim bem nos meus olhos. Eu estava trabalhando. Vi logo que era um cão bem cuidado fisicamente mas faltava-lhe carinho. Deixei minhas bugigangas (ela vende coisas que querem imitar jóias antigas) por não sei quanto tempo e fiquei agachada na calçada na Avenida Nossa Senhora, só namorando ele. Decidimos que ele viveria comigo. Naturalmente. Tudo aconteceu "naturalmente", ela frisou, como se quisesse dissipar de mim qualquer sombra de suspeita de um possível roubo.

Noutro dia no mesmo elevador, ela com seu carrinho de balangandãs, eu e Duque.
O elevador apertado e ela continuou femininamente a conversa do último elevador nosso:
- Tenho certeza que ele é de câncer. É muito sensível. Só falta falar. Né Duque? ... ele não é lindo?
Eu disse: Lindíssimo. E você que signo é?
- Ah, sou capricórnio mas com ascendente em câncer, combina sim.

Eu vejo Duque lambendo as mãos dela, as magras mãos cujos dedos ela oferecia de propósito e distraidamente a mordida dele. Eu olho admirando receosa por conta dos afiados dentes dele. Quase não entendo de cães.
- Você tem medo... ô não ofenda ele; Duque entende pensamentos e não gostou do que você pensou. Jamais me morderia, jamais me trairia. Né Duque?
Senti o pensamento de Duque latindo que jamais a trairia. Achei bonito. Chegamos.
- Tchau, bom trabalho.
- Tchau Duque.

Fui para a rua pensando longamente nos dois. Depois pensei nos mistérios da astrologia e perdi o fio do meu pensamento.
Ao final da tarde avistei pela janela Duque e Angela indo ver o crepúsculo na praia. Depois vi os dois voltando sorridentes e caninos, sob a noite estrelada; ela com fitas de vídeo penduradas ao braço; sempre conversando com ele.

Tenho inveja de Angela. This is the true.
O animal que eu quero não mora comigo, não almoça mais comigo, não brinca mais, não me telefona, não me advinha os pensamentos, não me acompanha ao crepúsculo, não gane querendo dengo, nossos signos parecem não mais combinar.
O animal que quero, pensa demais e por isso não passeia mais comigo.
E o pior: Não me lambe mais."

Elisa Lucinda

13 julho, 2007

Do desejo


Foto: Manoel Petry
Título: Ensaio
Fonte: Olhares.com

Do desejo

"Que canto há de cantar o que perdura?
A sombra, o sonho, o labirinto, o caos
A vertigem de ser, a asa, o grito.
Que mitos, meu amor, entre os lençóis:
O que tu pensas gozo é tão finito
E o que pensas amor é muito mais.

Como cobrir-te de pássaros e plumas
E ao mesmo tempo te dizer adeus
Porque imperfeito és carne e perecível

E o que eu desejo é luz e imaterial.

Que canto há de cantar o indefinível?
O toque sem tocar, o olhar sem ver
A alma, amor, entrelaçada dos indescritíveis.
Como te amar, sem nunca merecer?"

Hilda Hilst
(Da Noite - 1992)

11 julho, 2007

Soneto da separação


Foto: Ana Meireles
Fonte: Olhares.com

"De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente"

Vinícius de Moraes