15 dezembro, 2006

O que tinha de ser



Foto: Luís Pereira Jr.
Título: Círculos
Fonte: Olhares.com


O que tinha de ser

"Porque foste na vida
A última esperança
Encontrar-te me fez criança

Porque já eras meu
Sem eu saber sequer
Porque és o meu homem
E eu tua mulher

Porque tu me chegaste
Sem me dizer que vinhas
E tuas mãos foram minhas com calma

Porque foste em minh'alma
Como um amanhecer
Porque foste o que tinha de ser "

Vinicius de Moraes & Antonio Carlos Jobim

10 dezembro, 2006

Sonho



Foto: Nuno Milheiro
Título: Spring Painting
Fonte: Olhares.com


Sonho
(2001)

"À noite, fechei os olhos
E me rendi ao cansaço
De mansinho, o sono chegou
E me levou pelo espaço.

Vi uma revoada de borboletas
Por sobre as flores da estrada,
Tinha uma canção da cabeça
Para alegrar minha caminhada.

No campo passei voando
Num galope disparado,
Senti o vento no rosto
Com o coração acelerado.

Vi todas as estrelas do céu
Em noite de lua cheia,
E seu brilho era um véu
De prata por sobre a areia.

Vi o sol nascer bonito
Quando o dia se levanta,
E ouvi a alegria
Da passarada quando canta.

Senti o cheiro da chuva
No olho verde da vida
E voltou ao meu coração
A alegria perdida.

No mundo dos sonhos, eu vi
Na suave claridade,
Um sol em seu olhar
Brilhar com intensidade.

Vi o sorriso dos filhos
Que ainda desejo ter
Naquele olho de sol
Que sorria, a me aquecer.

Vi tantas coisas lindas,
Arco-íris, tempestades,
O pincel de um poeta
A colorir a cidade.

Vi um dia ensolarado,
Uma noite de luar,
As quatro estações do ano,
O mundo sempre a girar.

Senti o cheiro da terra
No meu corpo se perder
Senti o sorriso da vida
Em meus lábios florescer
E, ao acordar da viagem,
Sei que sonhei com você..."

17 outubro, 2006

Sorrisos




Foto: Sérgio Redondo
Fonte: Olhares.com



Sorrisos

"Fiz poesias para você... ainda as faço.
Palavras de tinta azul na folha em branco
Cujas linhas direcionam meus pensamentos,
Sensações, desejos, sentimentos
Descrevo o teu sorriso, o teu olhar,
A sutileza dos gestos,
Enquanto sua respiração quente arrepia minha pele.
Meu olhar sorri.

Sonhei com você... ainda sonho
Entre flores e pesadelos,
sensações surreais de amor e distância
Que preenchiam minha cama nas noites de solidão e ânsia.
Meu sono sorri.

Viajei com você... ainda viajo.
Demos uma volta ao mundo juntos.
Navio, carro, avião, estrada.
Quantas luas, quantos sóis nessa nossa caminhada
Quantas noites estreladas vivemos na grama molhada
Nos quatro cantos do mundo.
Meu caminho sorri.

Fiz amor com você... ainda faço.
Minha cama em fogo, cheiros, toques, sons e gritos
Respiração pesada e quente no meu peito
Jeito de quem não tem medo e nem pudor
Do sexo e do amor.
Meu corpo sorri.

Tive filhos com você... ainda os tenho.
Crianças brincam ao meu redor.
Seu sorriso eu vejo em cada rosto
E o brilho dos seus olhos brota do meu ventre,
Rasga o corpo e eu te dou à luz.
Meu filho sorri.

Vivi com você... ainda vivo.
Quanto tempo durou? Não sei.
Sei que já acabou.
Mas, em meu pensamento,
Ainda vivemos juntos, ao sabor do vento
E eu sei que ainda espero o teu retorno, forte e quente
Para que o meu sorriso volte a estar presente
Nas suas canções."

Em 08 de dezembro de 2000

14 outubro, 2006

Soneto da palavra



Foto: Nuno André Monteiro
Fonte: Olhares.com


Soneto da palavra

"A palavra nos define
A palavra nos limita
Existimos pela palavra
Verbo: palavra infinita.

Difícil é comunicar,
Expressar, abrir a boca
A palavra nos expõe
É como tirar a roupa.

Despir o corpo de seu sentido
Esvaziar-me de tudo:
Do sagrado e do proibido.

Virar palavra única, essencial.
Assim me encontro, grito mudo
Silêncio: palavra final."

22 de maio de 2001

(escrito após uma falha de comunicação no diálogo dos meus sentimentos com os teus...)

03 outubro, 2006

Minha alma tem o peso da luz...

"Minha alma tem o peso da luz.
Tem o peso da música.
Tem o peso da palavra nunca dita,
prestes quem sabe a ser dita.
Tem o peso de uma lembrança.
Tem o peso de uma saudade.
Tem o peso de um olhar.
Pesa como pesa uma ausência.
E a lágrima que não se chorou.
Tem o imaterial peso da solidão no meio de outros."

Clarice Lispector

27 agosto, 2006

Sugestão



Foto: Rubem Graça
Fonte: Olhares.com


Sugestão

"Antes que venham ventos e te levem
do peito o amor — este tão belo amor,
que deu grandeza e graça à tua vida —,
faze dele, agora, enquanto é tempo,
uma cidade eterna — e nela habita.

Uma cidade, sim. Edificada nas nuvens,
não — no chão por onde vais,
e alicerçada, fundo, nos teus dias,
de jeito assim que dentro dela caiba
o mundo inteiro: as árvores, as crianças,
o mar e o sol, a noite e os passarinhos,
e sobretudo caibas tu, inteiro:
o que te suja, o que te transfigura,
teus pecados mortais, tuas bravuras,
tudo afinal o que te faz viver
e mais o tudo que, vivendo, fazes.

Ventos do mundo sopram; quando sopram,
ai, vão varrendo, vão, vão carregando
e desfazendo tudo o que de humano
existe erguido e porventura grande,
mas frágil, mas finito como as dores,
porque ainda não ficando — qual bandeira
feita de sangue, sonho, barro e cântico —
no próprio coração da eternidade.
Pois de cântico e barro, sonho e sangue,
faze de teu amor uma cidade,
agora, enquanto é tempo.

Uma cidade onde possas cantar
quando o teu peito parecer,
a ti mesmo, ermo de cânticos;
onde possas brincar sempre que as praças
que percorrias, dono de inocências,
já se mostrarem murchas, de gangorras
recobertas de musgo, ou quando as relvas
da vida, outrora suaves a teus pés,
brandas e verdes já não se vergarem
à brisa das manhãs.

Uma cidade onde possas achar,
rútila e doce, a aurora
que na treva dissipaste;
onde possas andar como uma criança
indiferente a rumos: os caminhos,
gêmeos todos ali, te levarão
a uma aventura só — macia, mansa —
e hás de ser sempre um homem caminhando
ao encontro da amada, a já bem-vinda
mas, porque amada, segue a cada instante
chegando — como noiva para as bodas.

Dono do amor, és servo. Pois é dele
que o teu destino flui, doce de mando:
A menos que este amor, conquanto grande,
seja incompleto. Falte-lhe talvez
um espaço, em teu chão, para cravar
os fundos alicerces da cidade.

Ai de um amor assim, vergado ao vínculo
de tão amargo fardo: o de albatroz
nascido para inaugurar caminhos
no campo azul do céu e que, entretanto,
no momento de alçar-se para a viagem,
descobre, com terror, que não tem asas.

Ai de um pássaro assim, tão malfadado
a dissipar no campo exíguo e escuro
onde residem répteis: o que trouxe
no bico e na alma — para dar ao céu.

É tempo. Faze tua cidade eterna,
e nela habita:
antes que venham ventos, e te levem
do peito o amor — este tão belo amor
que dá grandeza e graça à tua vida."

Thiago de Mello

25 agosto, 2006

Maurício

Nestes últimos dias, tenho acordado assim meio que de mau humor, meio que querendo colo, mas querendo ficar sozinha.
Um aperto grande no peito, como a iminência de algo, de uma explosão, de uma descoberta que vai de novo me jogar no abismo.
Ontem, consegui fazer algo bom, que me ajudou a afastar isso, mas hoje não está acontecendo.
Então, estou quieta, no canto, só observando pra ver se essa sensação passa, se o nó se desfaz, ou se consigo identificar o que está para acontecer.
Não sei se quero identificar isso como uma tentativa de prevenir, evitar que aconteça, ou de me preparar para aquilo que não será mais inesperado, mais ainda assim uma surpresa.

Acho que estou ouvindo Legião Urbana demais...



Foto: Patagonia
Fonte: Olhares.com


Maurício

"Já não sei dizer se ainda sei sentir
O meu coração já não me pertence
Já não quer mais me obedecer
Parece agora estar tão cansado quanto eu.

Até pensei que era mais por não saber
Que ainda sou capaz de acreditar.
Me sinto tão só
E dizem que a solidão até que me cai bem.

Às vezes faço planos
Às vezes quero ir
Para algum país distante e
Voltar a ser feliz.

Já não sei dizer o que aconteceu
Se tudo que sonhei foi mesmo um sonho meu
Se meu desejo estão já se realizou
O que fazer depois
Pra onde é que eu vou?
Eu vi você voltar pra mim."

Renato Russo

24 agosto, 2006

Explode coração



Foto: Edson Santos
Fonte: Olhares.com


"Chega de tentar dissimular
e disfarçar
e esconder
o que não dá mais pra ocultar
E eu não posso mais calar
já que o brilho desse olhar
foi traidor
e entregou o que você tentou conter
o que você não quis desabafar
e me cortou

Chega de temer, chorar, sofrer
sorrir, se dar
e se perder
e se achar
e tudo aquilo que é viver
eu quero mais é me abrir
e que essa vida entre assim
como se fosse o sol
desvirginando a madrugada
quero sentir a dor dessa manhã

Nascendo, rompendo, rasgando,
tomando meu corpo
e então eu
chorando, sofrendo, gostando,
adorando, gritando
feito louca, alucinada e criança
sentindo o meu amor se derramando
Não dá mais pra segurar
Explode coração"

Gonzaguinha

23 agosto, 2006

O amor é fogo que arde sem se ver



Obra: "O beijo"
Autor: Auguste Rodin


"Amor é fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente,
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?"

Luís de Camões

18 agosto, 2006

Anabela



Foto: Sérgio Rodrigo
Fonte: Olhares.com


Anabela

"No porto de Vila Velha
Vi Anabela chegar
Olho de chama de vela,
Cabelo de velejar,
Pele de fruta cabocla
Com a boca de cambucá
Seios de agulha de bússola
Na trilha do meu olhar
Fui ancorando nela
Naquela ponta de mar

No pano do meu veleiro
Veio Anabela deitar
Vento eriçava o meu pelo
Queimava em mim seu olhar
Seu corpo de tempestade
Rodou meu corpo no ar
Com mãos de rodamoinho
Fez o meu barco afundar

Eu que pensei que fazia
Daquele ventre meu cais
Só percebi meu naufrágio
Quando era tarde demais
Vi Anabela partindo
Pra não voltar nunca mais"

Música: Mário Gil e Paulo César Pinheiro
Interpretação: Renato Braz

28 julho, 2006

Muito obrigado


Foto: Rui Calado Nogueira
Fonte: Olhares.com


Muito obrigado

"as igrejas prometem a salvação do povo
as esquerdas defendem a liberdade do povo

os governos constroem casas para o povo
os artistas elaboram arte para o povo

psicólogos propõem a terapia do povo
pedagogos descobrem como educar o povo

os políticos garantem a proteção do povo

o povo agradece comovido
e manda dizer que não está"

Ronaldo Monte de Almeida

14 julho, 2006

O filho que eu quero ter...


Foto: Retrato de um anjo
Autor: Ricardo Costa Vieira
Fonte: Olhares.com


Em homenagem aos amigos Alexandre e Franci (pais do Felipe), Junior e Geyza (pais do Guilherme), e o mais novo casal da lista, Gianna e Ronny (pais de ?).
Beijos enormes, meus amigos.
Muitas felicidades pra estas famílias que se iniciam.

O filho que eu quero ter

"É comum a gente sonhar, eu sei
Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer

Vejo um berço e nele eu me debruçar
Com o pranto a me correr
E assim, chorando, acalentar
O filho que eu quero ter

Dorme, meu pequenininho
Dorme que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem

De repente o vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde eu vim

Um menino sempre a me perguntar
Um porquê que não tem fim
Um filho a quem só queira bem
E a quem só diga que sim

Dorme, menino levado
Dorme que a vida já vem
Teu pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem

Quando a vida enfim me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu

E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus

Dorme, meu pai, sem cuidado
Dorme que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter"

Toquinho e Vinícius de Moraes

09 julho, 2006

Soneto


Foto: Mintegui
Fonte: Olhares.com


Soneto

"De leve beijo as suas mãos pequenas
Alvas, de neve, e, logo um doce, um breve
Fino rubor lhe tinge a face apenas
De leve beijo as suas mãos de neve.

Ela vive entre lírios e açucenas,
E o vento a beija e como o vento, deve
Ser o meu beijo em suas mãos serenas
- Tão leve o beijo como o vento é leve.

Que essa divina flor, que é tão suave
Ama o que é leve, como um leve adejo
de vento ou como um garganteio de ave.

E já me basta para meu tormento
Saber que o vento a beija, e que o meu beijo
Nunca será tão leve como o vento..."

Zeferino Brasil

30 junho, 2006

Despedida



Foto: Melancolia
Autor: Graça
Fonte: Olhares.com


Despedida

"Não me coroes, Alma querida, de rosas:
o encanto da Juventude é efêmero;
e a minha é quase extinta.
Também não me coroes de louros:
a Glória não fala ao coração, nem o ouve;
passa longínqua e fria.
Coroa-me das heras, que abraçam as graves ruínas:
são da humildade símbolo, e da tristeza eterna..."

Carlos Magalhães de Azeredo

21 junho, 2006

Eu apenas queria que você soubesse...


Foto: Paulo Amado
Lugar: Casa de Fados, em Lisboa


Eu apenas queria que você soubesse...

"Eu apenas queria
que você soubesse
Que aquela alegria
ainda está comigo
E que a minha ternura
não ficou na estrada
não ficou no tempo
presa na poeira

Eu apenas queria
que você soubesse
Que esta menina
hoje é uma mulher
E que esta mulher
é uma menina
que colheu seu fruto
na flor do seu carinho

Eu apenas queria dizer
a todo mundo que me gosta
que hoje eu me gosto muito mais
porque me entendo
muito mais também
E que a atitude
de recomeçar
É todo dia, toda hora
É se respeitar
na sua força e fé
Se olhar bem fundo
até o dedão do pé

Eu apenas queria
que você soubesse
Que essa criança
brinca nessa roda
E não teme o corte
de novas feridas
pois tem a saúde
que aprendeu com a vida"

Gonzaguinha

18 junho, 2006

Lua adversa


Foto: The burning heart
Autor: Sombra de Prata
Fonte: Olhares.com


Lua adversa

"Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua)

No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu..."

Cecília Meireles

12 junho, 2006

Minha namorada



Minha namorada

"Meu poeta hoje eu estou contente
Todo o mundo de repente ficou lindo
Ficou lindo de morrer.
Eu hoje estou me rindo
Nem eu mesmo sei de que
Porque eu recebi uma cartinhazinha de você:
Se você quer ser minha namorada
Ai, que linda namorada
Você poderia ser.
Se quiser ser somente minha
Exatamente essa coisinha,
Essa coisa toda minha
Que ninguém mais pode ter
Você tem que me fazer um juramento
De só ter um pensamento
Ser só minha até morrer
E também de não perder esse jeitinho
De falar devagarinho
Essas estórias de você
E de repente me fazer muito carinho
E chorar bem de mansinho
Sem ninguém saber porque.
E se mais do que minha namorada,
Você quer ser minha amada,
Minha amada, mas amada pra valer.
Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada,
Sem a qual se quer morrer,
Você tem que vir comigo
Em meu caminho
E talvez o meu caminho
Seja triste pra você
Os seus olhos têm que ser só dos meus olhos
E seus braços o meu ninho
No silêncio de depois
E você tem que ser a estrela derradeira
Minha amiga e companheira
No infinito de nós dois"

Vinícius de Moraes

09 junho, 2006

Bem no Fundo

"No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas."

Paulo Leminski

05 junho, 2006

Aqui na orla da praia...



Foto: Nuno Manuel Baptista
Fonte: Olhares.com



"Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu."

Fernando Pessoa

31 maio, 2006

Se não houvesse montanhas!



Foto: Geoffrey Demarquet
Fonte: Olhares.com


Se não houvesse montanhas

"Se não houvesse montanhas,
Se não houvesse paredes!
Se o sonho tecesse malhas
E os braços colhessem redes!

Se as noites e os dias passassem
Como nuvens sem cadeias
E os instantes da memória
fossem ventos nas areias!

Se não houvesse saudade,
Solidão nem despedida...
Se a vida inteira não fosse,
Além de breve, perdida!

Eu tinha um cavalo de asas
Que morreu sem ter vivido.
E em labirintos se movem
Os fantasmas que persigo..."

Cecília Meireles

28 maio, 2006

Fanatismo



Foto: Gaspar Avilar
Fonte: Olhares.com


Em homenagem ao aniversário da minha irmã, um poema de uma de suas escritoras preferidas.

Fanatismo

"Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros:
"Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim!..."

Florbela Espanca

Uns Versos



Foto: Hugo Henrique Pinto
Título: Caminhos de Portugal
Fonte: Olhares.com


Uns Versos

"Sou sua noite, sou seu quarto
Se você quiser dormir
Eu me despeço
Eu em pedaços
Como um silêncio ao contrário
Enquanto espero
Escrevo uns versos
Depois rasgo

Sou seu fado, sou seu bardo
Se você quiser ouvir
O seu eunuco, o seu soprano
Um seu arauto
Eu sou o sol da sua noite em claro,
Um rádio
Eu sou pelo avesso sua pele
O seu casaco

Se você vai sair
O seu asfalto
Se você vai sair
Eu chovo
Sobre o seu cabelo pelo seu itinerário
Sou eu o seu paradeiro
Em uns versos que eu escrevo
Depois rasgo"

Adriana Calcanhotto

26 maio, 2006

Teu Nome

"Teu nome foi um sonho do passado;
Foi um murmúrio eterno em meus ouvidos;
Foi som de uma harpa que embalou-me a vida
Foi um sorriso d'alma entre gemidos!

Teu nome foi um eco de soluços
Entre as minhas canções, entre os meus prantos;
Foi tudo que eu amei, que eu resumia:
Dores...prazer...ventura...amor...encantos!

Escrevi-o nos troncos do arvoredo,
Nas alvas praias, onde bate o mar;
Das estrelas fiz letras - soletrei-o,
Por noite bela, ao mórbido luar!

Escrevi-o nos prados verdejantes
Com as folhas da rosa ou da açucena!
Oh! quantas vezes na asa perfumada
Correu das brisas em manhã serena!

Mas na estrela morreu: caiu nos troncos;
Nas praias se apagou; murchou nas flores;
Só guardado ficou-me, aqui, no peito
- Saudade ou maldição por teus amores."

Jose Bonifacio de Andrada e Silva

19 maio, 2006

Canção do amor que chegou


Foto: José Luís Mendes
Fonte: Olhares.com


Em homenagem ao meu marido, no dia em que comemoramos nosso primeiro ano de casados.

Canção do amor que chegou

"Eu não sei, não sei dizer
Mas de repente essa alegria em mim
Alegria de viver
Que alegria de viver
E de ver tanta luz, tanto azul!
Quem jamais poderia supor
Que de um mundo que era tão triste e sem cor
Brotaria essa flor inocente
Chegaria esse amor de repente
E o que era somente um vazio sem fim
Se encheria de cores assim

Coração, põe-te a cantar
Canta o poema da primavera em flor
É o amor, o amor chegou
Chegou enfim"

Vinícius de Moraes

06 maio, 2006

Na noite terrível



Foto: Geoffroy Demarquet
Fonte: Olhares.com


"Na noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na noite de insônia, substância natural de todas as minhas noites,
Relembro, velando em modorra incômoda,
Relembro o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro, e uma angústia
Espalha-se por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na ilusão do espaço e do tempo,
Na falsidade do decorrer.
Mas o que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que só agora vejo que deveria ter feito,
O que só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso — e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver...

Se em certa altura
Tivesse voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em certo momento
Tivesse dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em certa conversa
Tivesse tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se tudo isso tivesse sido assim,
Seria outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria insensivelmente levado a ser outro também.

Mas não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras, inevitáveis, naturais,
A conversa fechada concludentemente,
A matéria toda resolvida...
Mas só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.

O que falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em sistema metafísico nenhum.
Pode ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei,
Mas poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos,

Nesta noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como uma verdade de que não partilho,
E lá fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p'ra mim."

Álvaro de Campos

05 maio, 2006

Lira II



Foto: Paulo Amado
Local: Piccadilly Circus, Londres


Lira II

"Pintam, Marília, os Poetas
A um menino vendado,
Com uma aljava de setas,
Arco empunhado na mão;
Ligeiras asas nos ombros,
O tenro corpo despido,
E de Amor, ou de Cupido
São os nomes, que lhe dão.

Porém eu, Marília, nego,
Que assim seja Amor; pois ele
Nem é moço, nem é cego,
Nem setas, nem asas tem.
Ora pois, eu vou formar-lhe
Um retrato mais perfeito,
Que ele já feriu meu peito,
Por isso o conheço bem.

Os seus compridos cabelos,
Que sobre as costas ondeiam,
São que os de Apolo mais belos;
Mas de loura cor não são.
Têm a cor da negra noite
E com o branco do rosto
Fazem, Marília, um composto
Da mais formosa união.

Tem redonda, e lisa testa,
Arqueadas sobrancelhas;
A voz meiga, a vista honesta,
E seus olhos são uns sóis.
Aqui vence Amor ao Céu,
Que no dia luminoso
O Céu tem um Sol formoso,
E o travesso Amor tem dois.

Na sua face mimosa,
Marília, estão misturadas
Purpúreas folhas de rosa,
Brancas folhas de jasmim.
Dos rubis mais preciosos
Os seus beiços são formados;
Os seus dentes delicados
São pedaços de marfim.

Mal vi seu rosto perfeito
Dei logo um suspiro, e ele
Conheceu haver-me feito
Estrago no coração.
Punha em mim os olhos, quando
Entendia eu não olhava:
Vendo o que via, baixava
A modesta vista ao chão.

Chamei-lhe um dia formoso:
Ele, ouvindo os seus louvores,
Com um gesto desdenhoso
Se sorriu, e não falou.
Pintei-lhe outra vez o estado,
Em que estava esta alma posta;
Não me deu também resposta,
Constrangeu-se, e suspirou.

Conheço os sinais, e logo
Animado de esperança,
Busco dar um desafogo
Ao cansado coração.
Pego em teus dedos nevados,
E querendo dar-lhe um beijo,
Cobriu-se todo de pejo,
E fugiu-me com a mão.

Tu, Marília, agora vendo
De Amor o lindo retrato,
Contigo estarás dizendo,
Que é este o retrato teu.
Sim, Marília, a cópia é tua,
Que Cupido é Deus suposto:
Se há Cupido, é só teu rosto,
Que ele foi quem me venceu."

Tomás Antônio Gonzaga,
em Marília de Dirceu

03 maio, 2006

Quem faz um poema...



Foto: José Luís Mendes
Fonte: Olhares.com


"Quem faz um poema abre uma janela.
Respira, tu que estás numa cela abafada,
esse ar que entra por ela.
Por isso é que os poemas têm ritmo
- para que possas profundamente respirar.
Quem faz um poema salva um afogado."

Mário Quintana

02 maio, 2006

Quadras da minha quadra



Foto: Mara Mitchell
Fonte: A velhice - Olhares.com


Quadras da minha quadra

"Dez de janeiro tantas vezes!
Oitenta? Mais, oitenta e tantos.
Os dias vão, passam-se os meses
Somam-se os anos. Quantos ! Quantos!
Deus não me falte com a memória
Para ter sempre uma saudade
Para lembrar a minha história
Embora esqueça a minha idade.
Bela palavra é oitentão!
Quero viver, quero viver,
Porém daí, não passo, não
Fazendo anos com prazer...
Não me iludir, velhice pura
Cheia de vida e verdadeira
Dispensa drogas e pintura
Trair o tempo é que é asneira.
Remédio para cabelo branco
O que não suja nem sapeca
Só vejo um, para ser franco
Só vejo um, que é a careca..
Negar idade engana alguém
Engana a vista ? Engana a morte ?
Ser muito velho é um grande bem
Uma vitória, muita sorte.
Bem, eu não vou fazer mistério
Arranjo ruga, o rosto vinco,
A falar mole, a falar sério:
Já passei de ... oitenta e cinco.
E, homem de lutas do passado
Sem temer faca nem trabuco
Tenho hoje um medo desgraçado
Viver demais, ficar caduco.
Ah, quem me vale é o Padre Eterno
Velho e a levar sempre a melhor
Regendo o céu, regendo o inferno
Regendo a terra, que é pior.
Tem nada não. Vai-se o juízo
E assim de novo eu amanheço:
O que era triste causa riso
O que era fim volta ao começo."

José Américo de Almeida

Seu Vicente, feliz aniversário!!

27 abril, 2006

Em defesa da palavra


Foto: Hugo Delgado
Fonte: Olhares.com



"Nas longas noites de insônia e nos dias de desânimo, aparece uma mosca que fica zumbindo dentro da cabeça da gente: "Vale a pena escrever? Todas as palavras sobreviverão em meio aos deuses e aos crimes? Terá sentido esse ofício que a gente escolheu - ou pelo qual a gente foi escolhido?"
As pessoas escrevem a partir de uma necessidade de comunicação e comunhão com os outros, para denunciar aquilo que machuca e compartilhar o que traz alegria. As pessoas escrevem contra sua própria solidão e a solidão dos demais porque supõem que a literatura transmite conhecimento, age sobre a linguagem e a conduta de quem a recebe, e nos ajuda a nos conhecermos melhor, para nos salvarmos juntos. Em realidade, a gente escreve para as pessoas cuja sorte má se sente identificado: os que comem mal, os que dormem pouco, os rebeldes e humilhados desta terra; os que, em geral, nem sabem ler. Dentre a minoria alfabetizada, quantos dispõem de dinheiro para comprar livros? Que bela tarefa a de anunciar o mundo dos justos e dos livres! Que função mais digna, essa de dizer não ao sistema de fome e das cadeias - visíveis ou invisíveis! Mas os limites estão a quantos metros de nós? Até onde os donos do poder nos dão permissão de ir?
A gente escreve para despistar a morte e destruir os fantasmas que nos afligem por dentro; mas aquilo que a gente escreve só pode ser útil quando coincide de alguma maneira com a necessidade coletiva de conquista da identidade. Ao dizer sou assim e assim me oferecer, acho que eu gostaria de, como escritor, ajudar as pessoas a tomar consciência do que são. Enquanto instrumento de revelação da identidade coletiva, a arte deveria ser considerada matéria de primeira necessidade e não artigo de luxo. Entretanto, na América Latina, o acesso aos produtos de arte e cultura está vedado a imensa maioria das pessoas. A obra nasce da consciência ferida do escritor e se projeta no mundo. Então, o ato de criação é um ato de solidariedade. Acredito no meu ofício, creio no meu instrumento. Nunca pude entender porque escrevem esses escritores que vivem dizendo, tão cheios de si, que escrever não tem sentido num mundo onde as pessoas morrem de fome. Também jamais consegui entender os que convertem a palavra em alvo de fúrias ou um objeto de fetichismo. A palavra é uma arma que pode ser bem ou mal usada: a culpa do crime nunca é da faca.
Creio que uma função primordial da literatura latino americana atual consiste em resgatar a palavra, que foi usada e abusada com impunidade e inconsciência, para impedir ou atraiçoar a comunicação. "Liberdade" é, no meu país, o nome de uma cadeia para presos políticos; chama-se "Democracia" a vários regimes de terror; a palavra "amor" define a relação de um homem com o seu automóvel; por "revolução" se entende aquilo que um novo detergente pode fazer em sua cozinha; "glória" significa, em muitos lugares da América Latina, o cemitério em ordem; e onde se diz "homem são" deveria se ler muitas vezes "homem impotente".
Ao se escrever, é possível oferecer o testemunho de nosso tempo e de nossa gente para agora e para depois, apesar da perseguição e da censura!
Pode-se escrever com que dizendo, de certa maneira: "Estamos aqui, aqui estivemos; somos assim, assim somos". Na América Latina, lentamente vai tomando força e forma uma literatura que não ajuda os demais a dormir; antes, tira-lhes o sono; que se propõe a enterrar nossos mortos; antes, quer perpetuá-los; que se nega a limpar as cinzas mas, em troca, procura acender o fogo.
Essa literatura contínua enriquece uma formidável tradição de palavras que lutam. Se é melhor, como cremos, a esperança à nostalgia, talvez essa literatura nascente possa chegar a merecer a beleza das forças sociais que mudarão radicalmente o curso de nossa história - mais cedo ou mais tarde, por bem ou por mal. E quem sabe ajude a guardar para os jovens que virão "o verdadeiro nome de cada coisa" - como dizia o poeta."

Eduardo Galeano (Vozes e Crônicas)

26 abril, 2006

Noite de estrelas



Foto: Henrique Zorzan
Fonte: Olhares.com
Música: Roberto Mendes/ Ana Basbaum
Interpretação: Maria Bethânia



"Arde na terra a solidão da lua
Iluminando meu olhar perdido
Entre campinas, abismos e chapadas
Meus olhos queimam a última lembrança
Como fogueira em noite de estrelas
Me deito só
Com vista para o mundo
Calando fundo meus sonhos,
minhas queixas
Mas alço vôo em busca de teus passos
Piso descalço na terra do teu corpo
Suave passo, suave gosto,
cheiro de mato
Meu braço laço, te lanço em segredo

Vem ser meu canto, meu verso,
meu soneto
Vem ser poema no árido deserto
Serei oásis, silêncio, festejo
Serei sertão nas horas de aconchego"

15 abril, 2006

O jogo da amarelinha

Chagall - The birthday
Autor: Chagall
Obra: The birthday

"Toco a sua boca, com um dedo toco o contorno da sua boca, vou desenhando essa boca como se estivesse saindo da minha mão, como se pela primeira vez a sua boca se entreabrisse, e basta-me fechar os olhos para desfazer tudo e recomeçar. Faço nascer, de cada vez, a boca que desejo, a boca que a minha mão escolheu e desenha no seu rosto, uma boca eleita entre todas, com soberana liberdade eleita por mim para desenhá-la com minha mão em seu rosto, e que por um acaso que não procuro compreender coincide exatamente com a sua boca, que sorri debaixo daquela que a minha mão desenha em você.

Você me olha, de perto me olha, cada vez mais de perto, e então brincamos de ciclope, olhamo-nos cada vez mais de perto e nossos olhos se tornam maiores, se aproximam uns dos outros, sobrepõem-se, e os ciclopes se olham, respirando confundidos, as bocas encontram-se e lutam debilmente, mordendo-se com os lábios, apoiando ligeiramente a língua nos dentes, brincando nas suas cavernas, onde um ar pesado vai e vem com um perfume antigo e um grande silêncio. Então, as minhas mãos procuram afogar-se no seu cabelo, acariciar lentamente a profundidade do seu cabelo, enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes vivos, de fragrância obscura. E se nos mordemos, a dor é doce; e se nos afogamos num breve e incrível absorver simultâneo de fôlego, essa instantânea morte é bela. E já existe uma só saliva e um só sabor de fruta madura, e eu sinto você tremular contra mim, como uma lua na água..."

Júlio Cortázar

12 abril, 2006

Depois de uma tarde...


Foto: Rui Marques
Local: Porto, Portugal

Fonte: Ponte de Fogo - Olhares.com

"Depois de uma tarde de quem sou eu
e de acordar a uma hora da madrugada em desespero,
eis que as três horas da madrugada eu acordei e me encontrei.
Simplesmente isso,
eu me encontrei
calma, alegre,
plenitude sem fulminação.
Simplesmente isso
Eu sou eu,
Você é você,
É lindo,
É vasto,
Vai durar.
Eu sei mais ou menos o que eu vou fazer em seguida,
mas por enquanto olha pra mim e me ama.
Não.
Tu olhas pra ti e te amas,
é o que está certo"

Clarice Lispector

10 abril, 2006

Alma em flor



ALMA EM FLOR
(Alberto de Oliveira)

"Foi... Não me lembra bem que idade eu tinha,
Se quinze anos ou mais;
Creio que só quinze anos... Foi aí fora
Numa fazenda antiga
Com seu engenho e as alas
De rústicas senzalas,
Seu extenso terreiro
Seu campo verde e verdes canaviais.

Era... Também o mês esquece agora
A infiel memória minha!
Maio... Junho... Não sei se julho diga,
Julho ou agosto. Sei que havia o cheiro
Do sassafrás em flor.
Sei que era o céu azul e a mesma cor
Sorria num gradil de trepadeiras;
Sei que era o tempo em que na serra, além
Cor-de-rosa se tornam as paineiras
De tanta flor que cor-de-rosa tem.



Foi, talvez nessa hora
- Como em chão virgem nascem num só dia
Duas flores irmãs, que flor e flor,
Ao tempo em que acordavam para o amor,
Eu acordei também para a poesia.

Contai, arcos da ponte, ondas do rio,
Balsas em flor, lírios da ribanceira
O enlevo meu... Das curvas ingázeiras
Cerrado arqueia-se o dossel sombrio.
Arde o sol pelo campo, onde o bravio
Gado se dessedenta nas ribeiras.
À beira d’água, como um desafio
Cantam, batendo roupa as lavadeiras.

Eu... Ponte, rio, balsas, flores, tudo
Eu, junto a vós embevecido e mudo...
(Aquelas horas de êxtase, contai-as !)
Eu, como que num fluido estranho imenso
Faço, talvez, o meu primeiro verso,
Vendo corar ao sol as suas saias.

Flores azuis, e tão azuis! aquelas
Que numa volta do caminho havia
Lá para o fim do campo, onde em singelas
Brancas boninas o sertão se abria.
A ramagem viçosa, alta e sombria
Presa, que azuis e vívidas e belas!
Um coro surdo e múrmuro se abria
De asa de toda espécie em torno delas.



Nesses dias azuis ali vividos
Elas azuis, azuis sempre lá estavam
Azuis do azul do céu de azul vestidos
Tão azuis que essa idade há muito é finda.
Como findos os sonhos que a encantavam
E eu do tempo através, vejo-as ainda !
Depois... Não a vi mais. existe ainda?
Exista ou não, a nossa história é finda.

Parado o engenho, extintas as senzalas
Sem mais senhor, existe inda a fazenda
A envidraçada casa de vivenda
Entregue ao tempo com as desertas salas.
Se ali penetras, vês em cada fenda
Verdear o musgo, e ouves se acaso falas
Soturnos ecos e o roçar das alas
De atros morcegos em revoada horrenda.
Amam o luar, entretanto, essas ruínas
Uma noite, horas mortas, de passagem
Eu, a varanda olhava, quando vejo
À luz da frente, entre cortinas
De prata e luz, chegar saudosa imagem
E, unindo os dedos, atirar-me um beijo..."