27 abril, 2006

Em defesa da palavra


Foto: Hugo Delgado
Fonte: Olhares.com



"Nas longas noites de insônia e nos dias de desânimo, aparece uma mosca que fica zumbindo dentro da cabeça da gente: "Vale a pena escrever? Todas as palavras sobreviverão em meio aos deuses e aos crimes? Terá sentido esse ofício que a gente escolheu - ou pelo qual a gente foi escolhido?"
As pessoas escrevem a partir de uma necessidade de comunicação e comunhão com os outros, para denunciar aquilo que machuca e compartilhar o que traz alegria. As pessoas escrevem contra sua própria solidão e a solidão dos demais porque supõem que a literatura transmite conhecimento, age sobre a linguagem e a conduta de quem a recebe, e nos ajuda a nos conhecermos melhor, para nos salvarmos juntos. Em realidade, a gente escreve para as pessoas cuja sorte má se sente identificado: os que comem mal, os que dormem pouco, os rebeldes e humilhados desta terra; os que, em geral, nem sabem ler. Dentre a minoria alfabetizada, quantos dispõem de dinheiro para comprar livros? Que bela tarefa a de anunciar o mundo dos justos e dos livres! Que função mais digna, essa de dizer não ao sistema de fome e das cadeias - visíveis ou invisíveis! Mas os limites estão a quantos metros de nós? Até onde os donos do poder nos dão permissão de ir?
A gente escreve para despistar a morte e destruir os fantasmas que nos afligem por dentro; mas aquilo que a gente escreve só pode ser útil quando coincide de alguma maneira com a necessidade coletiva de conquista da identidade. Ao dizer sou assim e assim me oferecer, acho que eu gostaria de, como escritor, ajudar as pessoas a tomar consciência do que são. Enquanto instrumento de revelação da identidade coletiva, a arte deveria ser considerada matéria de primeira necessidade e não artigo de luxo. Entretanto, na América Latina, o acesso aos produtos de arte e cultura está vedado a imensa maioria das pessoas. A obra nasce da consciência ferida do escritor e se projeta no mundo. Então, o ato de criação é um ato de solidariedade. Acredito no meu ofício, creio no meu instrumento. Nunca pude entender porque escrevem esses escritores que vivem dizendo, tão cheios de si, que escrever não tem sentido num mundo onde as pessoas morrem de fome. Também jamais consegui entender os que convertem a palavra em alvo de fúrias ou um objeto de fetichismo. A palavra é uma arma que pode ser bem ou mal usada: a culpa do crime nunca é da faca.
Creio que uma função primordial da literatura latino americana atual consiste em resgatar a palavra, que foi usada e abusada com impunidade e inconsciência, para impedir ou atraiçoar a comunicação. "Liberdade" é, no meu país, o nome de uma cadeia para presos políticos; chama-se "Democracia" a vários regimes de terror; a palavra "amor" define a relação de um homem com o seu automóvel; por "revolução" se entende aquilo que um novo detergente pode fazer em sua cozinha; "glória" significa, em muitos lugares da América Latina, o cemitério em ordem; e onde se diz "homem são" deveria se ler muitas vezes "homem impotente".
Ao se escrever, é possível oferecer o testemunho de nosso tempo e de nossa gente para agora e para depois, apesar da perseguição e da censura!
Pode-se escrever com que dizendo, de certa maneira: "Estamos aqui, aqui estivemos; somos assim, assim somos". Na América Latina, lentamente vai tomando força e forma uma literatura que não ajuda os demais a dormir; antes, tira-lhes o sono; que se propõe a enterrar nossos mortos; antes, quer perpetuá-los; que se nega a limpar as cinzas mas, em troca, procura acender o fogo.
Essa literatura contínua enriquece uma formidável tradição de palavras que lutam. Se é melhor, como cremos, a esperança à nostalgia, talvez essa literatura nascente possa chegar a merecer a beleza das forças sociais que mudarão radicalmente o curso de nossa história - mais cedo ou mais tarde, por bem ou por mal. E quem sabe ajude a guardar para os jovens que virão "o verdadeiro nome de cada coisa" - como dizia o poeta."

Eduardo Galeano (Vozes e Crônicas)

Nenhum comentário: