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06 fevereiro, 2010

Invictus

"Out of the night that covers me,
Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.

In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.

Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.

It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul."

William Ernest Henley
(1849 - 1902 / Gloucester / England)


TRADUÇÃO:
Tradutor: André Masini

"Do fundo desta noite que persiste
A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável, agradeço.

Nas garras do destino e seus estragos,
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.

Além deste oceano de lamúria,
Somente o Horror das trevas se divisa;
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza.

Por ser estreita a senda - eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma."

30 agosto, 2009

The time traveler's wife

CLARE: Why is love intensified by absence?
Long ago, men went to sea, and women waited for them, stanting on the edge of the water, scanning the horizon for the tiny ship. Now I wait for Henry. He vanishes unwillingly, without warning. I wait for him. Each moment that I wait feels like a year, an eternity. Each moment is as slow and transparent as glass. Through each moment I can see infinite moments lined up, waiting. Why has he gone where I cannot follow?

HENRY: All my pleasures are homey ones: armchair splendor, the sedate excitements of domesticity. All I ask for are humble delights. A mystery novel in bed, the smell of Clare's long red-gold hair damp from washing, a postcard from a friend on vacation, cream dispersing into coffee, the softness of the skin under Clare's breasts, the symmetry of grocery bags sitting on the kitchen counter waiting to be unpacked. I love meandering through the stacks at the library after the patrons have gone home, lightly touching the spines of the books. These are the things that can pierce me with longing when I am displaced from them by Time's whim.
And Clare, always Clare. Clare in the morning, sleepy and crumple-faced. Clare reading, with her hair hanging over the back of the chair, massaging balm into her cracked red hands before bed. Clare's low voice is in my ear often.
I hate to be where she is not, when she is not. And yet, I am always going, and she cannot follow.

19 agosto, 2009

Love after love

"The time will come
when, with elation
you will greet yourself arriving
at your own door, in your own mirror
and each will smile at the other's welcome,

and say, sit here. Eat.
You will love again the stranger who was your self.
Give wine. Give bread. Give back your heart
to itself, to the stranger who has loved you

all your life, whom you ignored
for another, who knows you by heart.
Take down the love letters from the bookshelf,

the photographs, the desperate notes,
peel your own image from the mirror.
Sit. Feast on your life."

Derek Walcott

06 agosto, 2009

Quero ficar com você




"Quero ficar com você
E é tão fundo
Que eu posso dizer
Que o fim do mundo
Não vai chegar mais

Quero ficar com você
E é a glória do saber querer
Com longa história
Pra frente e pra trás

Não quero que o nosso amor
Seja um buraco no não
Mas sinal da trajetória
Da vida e da canção
Marca de queda e vitória
Na palma da mão
Sombra, memória e porvir do coração

Não deixe que o nosso amor
Seja um corisco no caos
Mas passos da liberdade
Pisando seus degraus
Feito de momentos bons
E de momentos maus
De descobertas, de ventos, velas, naus"

Composição: Caetano Veloso
Na voz de Renato Braz

22 agosto, 2008

Eu te amo




"Ah, se já perdemos a noção da hora
Se juntos já jogamos tudo fora
Me conta agora como hei de partir

Ah, se ao te conhecer
Dei pra sonhar, fiz tantos desvarios
Rompi com o mundo, queimei meus navios
Me diz pra onde é que ainda posso ir

Se nós, nas travessuras das noites eternas
Já confundimos tanto as nossas pernas
Diz com que pernas eu devo seguir

Se entornaste a nossa sorte pelo chão
Se na bagunça do teu coração
Meu sangue errou de veia e se perdeu

Se na desordem do armário embutido
Meu paletó enlaça o teu vestido
E o meu sapato ainda pisa no teu

Se nos amamos feito dois pagãos
Teus seios ainda estão nas minhas mãos
Me explica com que cara eu vou sair

Não, acho que estás te fazendo de tonta
Te dei meus olhos pra tomares conta
Agora conta como hei de partir"


Chico Buarque e Tom Jobim

10 agosto, 2008

Tenho saudades tuas...


Foto: Rui Soldado
Título: Momento
Fonte: Olhares.com

"Sinto a tua falta. E nem o dourado do sol nestes dias de céu azul, nem o calor afrodisíaco das noites de Agosto, nem tão pouco a certeza de que o verão vai chegar ao fim, ajudam a esquecer a falta que me fazes.

Este é o dia em que as certezas se transformam em dúvidas, em que os risos se convertem em lamentos, em que a constatação de te ter perdido faz com que o inverno chegue muito mais cedo.

Tenho tantas saudades tuas. Do sal no teu corpo, do sol nos teus olhos, das estrelas no teu sorriso. Da forma como te entregavas. E não sei tão pouco se ainda te amo ou se isto é apenas a saudade dos dias mais felizes da minha vida, os que passei ao teu lado, nesses verões em que o mar era o nosso denominador comum e o alentejo era a nossa casa."

Pedro Rapoula

07 julho, 2008

Ai! Se sêsse!...


Fonte: Academia Brasileira de Literatura de Cordel

"Se um dia nós se gostasse;
Se um dia nós se queresse;
Se nós dois se impariásse,
Se juntinho nós dois vivesse!
Se juntinho nós dois morasse
Se juntinho nós dois drumisse;
Se juntinho nós dois morresse!

Se pro céu nós assubisse?
Mas porém, se acontecesse
qui São Pêdo não abrisse
as portas do céu e fosse,
te dizê quarqué toulíce?

E se eu me arriminasse
e tu cum insistisse,
prá qui eu me arrezorvesse
e a minha faca puxasse,
e o buxo do céu furasse?...

Tarvez qui nós dois ficasse
tarvez qui nós dois caísse
e o céu furado arriasse
e as virge tôdas fugisse!!!"

Zé da Luz

19 julho, 2007

Mon Animal


Foto: Joaquim Filipe
Título: A musa
Fonte:
Olhares.com

"Eu a vejo quase todas as manhãs. Não é exatamente bonita. Aliás ela é de uma feiúra estranha como se carregasse uma boniteza espalhada em si, nos gestos e não nos traços exatamente.
Não importa. Importa é que a vejo acompanhada perenemente pelo seu cão.
Um pastor alemão com cara de bom companheiro. E o é. Eu vejo.
Olha-a muito, encaixa seu focinho entre os joelhos dela, brinca com ela, gane querendo dengo.
Ela também, essa minha vizinha de uns quarenta e vividos anos, brinca de não-solidão com esse cachorro específico; gosta dele, ri:
"Não Duque, assim não, deixa o moço",
"Duque, me espere. Não vá na minha frente assim",
"Cuidado com o carro, menino". Ele a olha como quem agradece.

E vão os dois, não em vão, pelas ruas de Copacabana sob o sol, felizes que só vendo. Eu vejo.
Ela é camelô; nos encontramos no elevador e eu:
- Vocês se divertem tanto, é tão bonito.
- É, nos conhecemos na rua. Ele olhou pra mim bem nos meus olhos. Eu estava trabalhando. Vi logo que era um cão bem cuidado fisicamente mas faltava-lhe carinho. Deixei minhas bugigangas (ela vende coisas que querem imitar jóias antigas) por não sei quanto tempo e fiquei agachada na calçada na Avenida Nossa Senhora, só namorando ele. Decidimos que ele viveria comigo. Naturalmente. Tudo aconteceu "naturalmente", ela frisou, como se quisesse dissipar de mim qualquer sombra de suspeita de um possível roubo.

Noutro dia no mesmo elevador, ela com seu carrinho de balangandãs, eu e Duque.
O elevador apertado e ela continuou femininamente a conversa do último elevador nosso:
- Tenho certeza que ele é de câncer. É muito sensível. Só falta falar. Né Duque? ... ele não é lindo?
Eu disse: Lindíssimo. E você que signo é?
- Ah, sou capricórnio mas com ascendente em câncer, combina sim.

Eu vejo Duque lambendo as mãos dela, as magras mãos cujos dedos ela oferecia de propósito e distraidamente a mordida dele. Eu olho admirando receosa por conta dos afiados dentes dele. Quase não entendo de cães.
- Você tem medo... ô não ofenda ele; Duque entende pensamentos e não gostou do que você pensou. Jamais me morderia, jamais me trairia. Né Duque?
Senti o pensamento de Duque latindo que jamais a trairia. Achei bonito. Chegamos.
- Tchau, bom trabalho.
- Tchau Duque.

Fui para a rua pensando longamente nos dois. Depois pensei nos mistérios da astrologia e perdi o fio do meu pensamento.
Ao final da tarde avistei pela janela Duque e Angela indo ver o crepúsculo na praia. Depois vi os dois voltando sorridentes e caninos, sob a noite estrelada; ela com fitas de vídeo penduradas ao braço; sempre conversando com ele.

Tenho inveja de Angela. This is the true.
O animal que eu quero não mora comigo, não almoça mais comigo, não brinca mais, não me telefona, não me advinha os pensamentos, não me acompanha ao crepúsculo, não gane querendo dengo, nossos signos parecem não mais combinar.
O animal que quero, pensa demais e por isso não passeia mais comigo.
E o pior: Não me lambe mais."

Elisa Lucinda

11 julho, 2007

Soneto da separação


Foto: Ana Meireles
Fonte: Olhares.com

"De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente"

Vinícius de Moraes

21 maio, 2007

So in love

Em homenagem ao dia 19 de maio...



Título: Tango Argentino
Autor: Pedro Álvarez

"Strange, dear, but true, dear
When I'm close to you, dear
The stars fill the sky
So in love with you am I"


Cole Porter

14 julho, 2006

O filho que eu quero ter...


Foto: Retrato de um anjo
Autor: Ricardo Costa Vieira
Fonte: Olhares.com


Em homenagem aos amigos Alexandre e Franci (pais do Felipe), Junior e Geyza (pais do Guilherme), e o mais novo casal da lista, Gianna e Ronny (pais de ?).
Beijos enormes, meus amigos.
Muitas felicidades pra estas famílias que se iniciam.

O filho que eu quero ter

"É comum a gente sonhar, eu sei
Quando vem o entardecer
Pois eu também dei de sonhar
Um sonho lindo de morrer

Vejo um berço e nele eu me debruçar
Com o pranto a me correr
E assim, chorando, acalentar
O filho que eu quero ter

Dorme, meu pequenininho
Dorme que a noite já vem
Teu pai está muito sozinho
De tanto amor que ele tem

De repente o vejo se transformar
Num menino igual a mim
Que vem correndo me beijar
Quando eu chegar lá de onde eu vim

Um menino sempre a me perguntar
Um porquê que não tem fim
Um filho a quem só queira bem
E a quem só diga que sim

Dorme, menino levado
Dorme que a vida já vem
Teu pai está muito cansado
De tanta dor que ele tem

Quando a vida enfim me quiser levar
Pelo tanto que me deu
Sentir-lhe a barba me roçar
No derradeiro beijo seu

E ao sentir também sua mão vedar
Meu olhar dos olhos seus
Ouvir-lhe a voz a me embalar
Num acalanto de adeus

Dorme, meu pai, sem cuidado
Dorme que ao entardecer
Teu filho sonha acordado
Com o filho que ele quer ter"

Toquinho e Vinícius de Moraes

18 junho, 2006

Lua adversa


Foto: The burning heart
Autor: Sombra de Prata
Fonte: Olhares.com


Lua adversa

"Tenho fases, como a lua.
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua)

No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu..."

Cecília Meireles

05 junho, 2006

Aqui na orla da praia...



Foto: Nuno Manuel Baptista
Fonte: Olhares.com



"Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,
Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,
Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,
E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio
Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;
O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;
A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calada e só,
Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;
Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,
E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,
Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;
Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,
Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,
Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,
Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,
Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu."

Fernando Pessoa

19 maio, 2006

Canção do amor que chegou


Foto: José Luís Mendes
Fonte: Olhares.com


Em homenagem ao meu marido, no dia em que comemoramos nosso primeiro ano de casados.

Canção do amor que chegou

"Eu não sei, não sei dizer
Mas de repente essa alegria em mim
Alegria de viver
Que alegria de viver
E de ver tanta luz, tanto azul!
Quem jamais poderia supor
Que de um mundo que era tão triste e sem cor
Brotaria essa flor inocente
Chegaria esse amor de repente
E o que era somente um vazio sem fim
Se encheria de cores assim

Coração, põe-te a cantar
Canta o poema da primavera em flor
É o amor, o amor chegou
Chegou enfim"

Vinícius de Moraes

05 maio, 2006

Lira II



Foto: Paulo Amado
Local: Piccadilly Circus, Londres


Lira II

"Pintam, Marília, os Poetas
A um menino vendado,
Com uma aljava de setas,
Arco empunhado na mão;
Ligeiras asas nos ombros,
O tenro corpo despido,
E de Amor, ou de Cupido
São os nomes, que lhe dão.

Porém eu, Marília, nego,
Que assim seja Amor; pois ele
Nem é moço, nem é cego,
Nem setas, nem asas tem.
Ora pois, eu vou formar-lhe
Um retrato mais perfeito,
Que ele já feriu meu peito,
Por isso o conheço bem.

Os seus compridos cabelos,
Que sobre as costas ondeiam,
São que os de Apolo mais belos;
Mas de loura cor não são.
Têm a cor da negra noite
E com o branco do rosto
Fazem, Marília, um composto
Da mais formosa união.

Tem redonda, e lisa testa,
Arqueadas sobrancelhas;
A voz meiga, a vista honesta,
E seus olhos são uns sóis.
Aqui vence Amor ao Céu,
Que no dia luminoso
O Céu tem um Sol formoso,
E o travesso Amor tem dois.

Na sua face mimosa,
Marília, estão misturadas
Purpúreas folhas de rosa,
Brancas folhas de jasmim.
Dos rubis mais preciosos
Os seus beiços são formados;
Os seus dentes delicados
São pedaços de marfim.

Mal vi seu rosto perfeito
Dei logo um suspiro, e ele
Conheceu haver-me feito
Estrago no coração.
Punha em mim os olhos, quando
Entendia eu não olhava:
Vendo o que via, baixava
A modesta vista ao chão.

Chamei-lhe um dia formoso:
Ele, ouvindo os seus louvores,
Com um gesto desdenhoso
Se sorriu, e não falou.
Pintei-lhe outra vez o estado,
Em que estava esta alma posta;
Não me deu também resposta,
Constrangeu-se, e suspirou.

Conheço os sinais, e logo
Animado de esperança,
Busco dar um desafogo
Ao cansado coração.
Pego em teus dedos nevados,
E querendo dar-lhe um beijo,
Cobriu-se todo de pejo,
E fugiu-me com a mão.

Tu, Marília, agora vendo
De Amor o lindo retrato,
Contigo estarás dizendo,
Que é este o retrato teu.
Sim, Marília, a cópia é tua,
Que Cupido é Deus suposto:
Se há Cupido, é só teu rosto,
Que ele foi quem me venceu."

Tomás Antônio Gonzaga,
em Marília de Dirceu

27 abril, 2006

Em defesa da palavra


Foto: Hugo Delgado
Fonte: Olhares.com



"Nas longas noites de insônia e nos dias de desânimo, aparece uma mosca que fica zumbindo dentro da cabeça da gente: "Vale a pena escrever? Todas as palavras sobreviverão em meio aos deuses e aos crimes? Terá sentido esse ofício que a gente escolheu - ou pelo qual a gente foi escolhido?"
As pessoas escrevem a partir de uma necessidade de comunicação e comunhão com os outros, para denunciar aquilo que machuca e compartilhar o que traz alegria. As pessoas escrevem contra sua própria solidão e a solidão dos demais porque supõem que a literatura transmite conhecimento, age sobre a linguagem e a conduta de quem a recebe, e nos ajuda a nos conhecermos melhor, para nos salvarmos juntos. Em realidade, a gente escreve para as pessoas cuja sorte má se sente identificado: os que comem mal, os que dormem pouco, os rebeldes e humilhados desta terra; os que, em geral, nem sabem ler. Dentre a minoria alfabetizada, quantos dispõem de dinheiro para comprar livros? Que bela tarefa a de anunciar o mundo dos justos e dos livres! Que função mais digna, essa de dizer não ao sistema de fome e das cadeias - visíveis ou invisíveis! Mas os limites estão a quantos metros de nós? Até onde os donos do poder nos dão permissão de ir?
A gente escreve para despistar a morte e destruir os fantasmas que nos afligem por dentro; mas aquilo que a gente escreve só pode ser útil quando coincide de alguma maneira com a necessidade coletiva de conquista da identidade. Ao dizer sou assim e assim me oferecer, acho que eu gostaria de, como escritor, ajudar as pessoas a tomar consciência do que são. Enquanto instrumento de revelação da identidade coletiva, a arte deveria ser considerada matéria de primeira necessidade e não artigo de luxo. Entretanto, na América Latina, o acesso aos produtos de arte e cultura está vedado a imensa maioria das pessoas. A obra nasce da consciência ferida do escritor e se projeta no mundo. Então, o ato de criação é um ato de solidariedade. Acredito no meu ofício, creio no meu instrumento. Nunca pude entender porque escrevem esses escritores que vivem dizendo, tão cheios de si, que escrever não tem sentido num mundo onde as pessoas morrem de fome. Também jamais consegui entender os que convertem a palavra em alvo de fúrias ou um objeto de fetichismo. A palavra é uma arma que pode ser bem ou mal usada: a culpa do crime nunca é da faca.
Creio que uma função primordial da literatura latino americana atual consiste em resgatar a palavra, que foi usada e abusada com impunidade e inconsciência, para impedir ou atraiçoar a comunicação. "Liberdade" é, no meu país, o nome de uma cadeia para presos políticos; chama-se "Democracia" a vários regimes de terror; a palavra "amor" define a relação de um homem com o seu automóvel; por "revolução" se entende aquilo que um novo detergente pode fazer em sua cozinha; "glória" significa, em muitos lugares da América Latina, o cemitério em ordem; e onde se diz "homem são" deveria se ler muitas vezes "homem impotente".
Ao se escrever, é possível oferecer o testemunho de nosso tempo e de nossa gente para agora e para depois, apesar da perseguição e da censura!
Pode-se escrever com que dizendo, de certa maneira: "Estamos aqui, aqui estivemos; somos assim, assim somos". Na América Latina, lentamente vai tomando força e forma uma literatura que não ajuda os demais a dormir; antes, tira-lhes o sono; que se propõe a enterrar nossos mortos; antes, quer perpetuá-los; que se nega a limpar as cinzas mas, em troca, procura acender o fogo.
Essa literatura contínua enriquece uma formidável tradição de palavras que lutam. Se é melhor, como cremos, a esperança à nostalgia, talvez essa literatura nascente possa chegar a merecer a beleza das forças sociais que mudarão radicalmente o curso de nossa história - mais cedo ou mais tarde, por bem ou por mal. E quem sabe ajude a guardar para os jovens que virão "o verdadeiro nome de cada coisa" - como dizia o poeta."

Eduardo Galeano (Vozes e Crônicas)

10 abril, 2006

Alma em flor



ALMA EM FLOR
(Alberto de Oliveira)

"Foi... Não me lembra bem que idade eu tinha,
Se quinze anos ou mais;
Creio que só quinze anos... Foi aí fora
Numa fazenda antiga
Com seu engenho e as alas
De rústicas senzalas,
Seu extenso terreiro
Seu campo verde e verdes canaviais.

Era... Também o mês esquece agora
A infiel memória minha!
Maio... Junho... Não sei se julho diga,
Julho ou agosto. Sei que havia o cheiro
Do sassafrás em flor.
Sei que era o céu azul e a mesma cor
Sorria num gradil de trepadeiras;
Sei que era o tempo em que na serra, além
Cor-de-rosa se tornam as paineiras
De tanta flor que cor-de-rosa tem.



Foi, talvez nessa hora
- Como em chão virgem nascem num só dia
Duas flores irmãs, que flor e flor,
Ao tempo em que acordavam para o amor,
Eu acordei também para a poesia.

Contai, arcos da ponte, ondas do rio,
Balsas em flor, lírios da ribanceira
O enlevo meu... Das curvas ingázeiras
Cerrado arqueia-se o dossel sombrio.
Arde o sol pelo campo, onde o bravio
Gado se dessedenta nas ribeiras.
À beira d’água, como um desafio
Cantam, batendo roupa as lavadeiras.

Eu... Ponte, rio, balsas, flores, tudo
Eu, junto a vós embevecido e mudo...
(Aquelas horas de êxtase, contai-as !)
Eu, como que num fluido estranho imenso
Faço, talvez, o meu primeiro verso,
Vendo corar ao sol as suas saias.

Flores azuis, e tão azuis! aquelas
Que numa volta do caminho havia
Lá para o fim do campo, onde em singelas
Brancas boninas o sertão se abria.
A ramagem viçosa, alta e sombria
Presa, que azuis e vívidas e belas!
Um coro surdo e múrmuro se abria
De asa de toda espécie em torno delas.



Nesses dias azuis ali vividos
Elas azuis, azuis sempre lá estavam
Azuis do azul do céu de azul vestidos
Tão azuis que essa idade há muito é finda.
Como findos os sonhos que a encantavam
E eu do tempo através, vejo-as ainda !
Depois... Não a vi mais. existe ainda?
Exista ou não, a nossa história é finda.

Parado o engenho, extintas as senzalas
Sem mais senhor, existe inda a fazenda
A envidraçada casa de vivenda
Entregue ao tempo com as desertas salas.
Se ali penetras, vês em cada fenda
Verdear o musgo, e ouves se acaso falas
Soturnos ecos e o roçar das alas
De atros morcegos em revoada horrenda.
Amam o luar, entretanto, essas ruínas
Uma noite, horas mortas, de passagem
Eu, a varanda olhava, quando vejo
À luz da frente, entre cortinas
De prata e luz, chegar saudosa imagem
E, unindo os dedos, atirar-me um beijo..."