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30 março, 2010

Pessoa predileta




"O amor dela é tranquilo, imutável, o meu é para agora, renovável. Ai se ela não demonstra apego numa tarde, mergulho em surto. Ela não depende de jura e declarações, está bem assim, cercada de um silêncio atento, sabendo que a amo. Quando preciso dela, ela supõe que é drama e mais uma artimanha para ser o centro dos acontecimentos. Quando ela precisa de mim, eu deduzo que ela procura se afastar e perdeu o interesse."

Da crônica "Pessoa predileta", de autoria de Fabrício Carpinejar

Fonte: http://carpinejar.blogspot.com/

04 outubro, 2009

Não sabemos namorar

"Agora dei para mascar chiclete com sabor melancia.

Deveria esconder esse detalhe. Mórbido para quem atravessou os 36 anos.

Mas vejo o quanto escondo o romantismo debaixo da mordida. Sou açucarado. Meu beijo é diabético. Logo eu que passo uma imagem seca de bolacha de sal.

Vá lá, não vou sorrir para mim de noite ou pedir a benção para os apaixonados, mas não acredito nesta história de acomodação no romance. Que de uma hora para outra cansamos. Não é cansaço, não é que paramos de seduzir porque conquistamos e que não precisamos mais arrebatar com surpresas. Não é que estamos seguros e não arriscamos mais. Não é o conforto ou o domínio territorial.

Senão começaremos a acreditar que existe cupido. E cupido é o mais cafona dos anjos. Quem começa uma relação com cupido termina na fossa repetindo os erros ortográficos das canções sertanejas.

Confio que há gente que não saiba namorar. Não sabe namorar, e pronto. Supõe que é instintivo, natural, que é beijar, abraçar e os oceanos transportam a espuma. Que basta amar e as relações funcionam.

Mas as relações queimam pelo pouco uso. A eletricidade enferruja.

Há gente que jura que namorar é cumprir um expediente depois do expediente: jantar, conversar e transar. Há gente que não quer namorar, e sim uma amizade para dividir o que se é. Sem tensão. Sem cobrança. Sem nervosismo.

Que tudo está definido e seguro para o final do ano, que não pode ser perdido no próximo minuto. Eu acabei de perder o próximo minuto.

Namoro é ambição. É um final de semana a cada dia. É uma delicadeza insuportável, antecipar os movimentos e agradar quando não se espera. Gentileza em cima de gentileza, infindável. Um cuidado para não magoar com aviso e pergunta, com aquela educação concedida a gestantes e idosos.

Namorar requer uma atenção absoluta. E não reclame: amar pode ser para toda a vida quando oferecemos toda a nossa vida.

Tem que se preparar, ceder, abrir espaço, oferecer, renunciar. A inquietação nasce da paciência. A criatividade nasce de uma porta fechada.

É um extremismo terrorista. Explodiremos civis.

Durante algum desentendimento, mobiliza-se a genealogia da imaginação para escandalizar de novo. Carro de som, helicóptero, arranjos suicidas pela janela. Não é permitido ficar quieto, parado, para conversar a respeito. A conversa demora.

No namoro, não existe como ser egoísta. Egoísmo se deixa no JK. É pensar pelo outro, com o outro, como o outro.

É ter uma lista de compra de mercado na ponta da língua, junto com o chiclete de melancia: qual a pasta de dente que ela usa, o xampu, o condicionador, o azeite, o leite que toma, o suco... Desconhecer a geladeira da namorada é passagem direta para o congelador.

É entrar numa livraria e pensar no livro que ela vai gostar, é entrar numa loja e pensar um vaso que combinaria com sua sala, é entrar no cemitério e sonhar com um mausoléu para a família, sim, planejar a morte junto - nada mais romântico.

É entrar em si mesmo e lustrar as memórias mais distantes para parecer orfão antes de sua chegada.

Agora dei para mascar a minha boca."

Fabrício Carpinejar

14 outubro, 2008

A poesia a serviço do mundo real

Fabrício Carpinejar é um dos meus escritores favoritos. Acompanho com frequência o seu blog. De uns tempos pra cá, ele começou a prestar um "serviço público", respondendo cartas e emails de leitores acercas de problemas pessoais. E esse é mais um site que merece ser acompanhado.

Consultório poético

Alguns trechos das últimas cartas:

Ele me traiu duas vezes com a mesma amante

"O amor é mundano ou é santo.

O mundano é o que não atravessa nenhuma tempestade para se definir santo. É a brisa dos costumes. Afirmação alinhada à concordância. Não teve nenhuma crise, nenhum estremecimento sério, para testar suas contradições.

Sem incoerência, não há amor santo. O amor é uma incoerência coerente somente aos dois envolvidos.

No santo, quem ama está terrivelmente sozinho, contra a opinião da maioria."


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O piloto-automático do casamento

"A felicidade enjoa.

Sem escolhas é como se o dia-a-dia fosse emprestado. Criou, portanto, uma encruzilhada para tudo parecer mais verdadeiro, mais dramático, para readquirir o direito de optar e decidir.

Tampouco é o segredo ou a vida dupla que a atormenta, é o excesso de domínio do casamento. O flerte é uma forma de sair do combinado, do estabelecido, da expectativa. Remodelar o impulso. Discutir as certezas anteriores. Redescobrir o prazer de não controlar o prazer.

Veja seu marido: demonstra uma amizade conhecida, com respeito e entendimento fácil.
Disse entendimento, não cumplicidade. Ele é receptivo às suas queixas. Tanto que procurou terapia. Vocês estão juntos pelo contexto: família, negócios, lembranças comuns. Mas cansou de decorar as respostas. A facilidade conjugal a irrita. O que a leva para o outro lado é a paixão. Não ter posse do que acontecerá: não prever se vai transar ou não no próximo encontro com o namorado, prolongar uma clandestinidade que a excita e a põe em movimento na dúvida e na crise de identidade.

(...)

Não ter ido para a cama com o rapaz não diminui o impasse, só faz aumentar a curiosidade por aquilo que não se viveu. A dignidade não é o problema, e sim se pode ser tão feliz dentro daquilo que já a tornou feliz algum dia. Apesar de não acreditar nisso, a felicidade pode se repetir. E sua repetição é aprofundamento.

Não gosta da previsibilidade. Em seu raciocínio, é ladainha monótona e morna. Projeta no marido sua necessidade de mudar (sua falta de ânimo é dele, seu marasmo é dele, os problemas de relação são dele). Não assumiu parte da dívida.

(...)

Tanto o homem e a mulher se esforçam prodigiosamente para o amante, armando encontros impossíveis e articulando horários inacreditáveis, porém não são capazes de se esforçar nem um pouco para manter o casamento. Deixam no piloto-automático e culpam o poste pelo acidente."


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E aqui, o novo texto do Carpinejar, publicado no blog.



RECONCILIAÇÃO
Arte de Gustav Klimt

"O canalha tem o apetite tanto para a conversa quanto para o sexo. Na mesma proporção. A conversa é o único acesso que o leva ao sexo selvagem.

Conversar antes do sexo é nossa possibilidade de melhorar a transa. Conversar depois do sexo é nossa capacidade de piorar a transa.

Repare que homem quando fala demais depois de trepar é porque broxou. Homem só se dispõe ao desabafo no fracasso. Ele fuma as palavras para manter sua reputação ereta, já que não conseguiu dominar o espírito.

Quando satisfeito, abraçará o silêncio, como uma camisa gasta e valiosa. Não reclame do ronco do marido, do namorado. Homem feliz sexualmente ronca de tanto silêncio acumulado.

O canalha não liga para o primeiro encontro, a delícia do primeiro encontro. Deixa os começos para os cafajestes. Ele é alucinado pelas reconciliações. Talvez isso explique sua paixão paradoxal pelo casamento.

Reatar um amor é mais trepidante do que iniciar um amor. Conquistar novamente uma boca que não o quer mais, decidida a desaforá-lo, tem mais suspense do que conhecer uma boca. A despedida humilha a estréia. Erótica pela necessidade de uma resposta urgente e agora. Transferir o nervosismo de fazer as malas para desfazer a cama.

A tensão favorece a nudez. Um abraço não é mais um abraço, mas um choque de seios contra seu peito. Visceral, um quadro sem moldura.

Canalha que é canalha não fugirá de discutir o relacionamento ou ter um papo sério. É o primeiro a sentar. É no desentendimento que cresce. Na argumentação. Nas ofensas gritadas, choradas, quando os gatos da garganta enlouquecem os telhados.

Briga boa é feita na cozinha, com copos, pratos, facas e garfos à disposição. Com um repertório de armas nos armários.

Quando a relação está por um fio, quando tudo está contra ele, todas as evidências, ele renasce e não aceita o desespero. Acostumado a viver de sustos, não entra em pânico. Está em seu território movediço, em seu escritório de verossimilhanças: transformar desculpas inacreditáveis em versões realistas, formular enredos para coincidências, fundamentar acasos.

Enquanto muitos escapam na hora de dar explicações, o canalha estende a toalha da mesa para a discussão. É o filho do inquérito. Não se precipita, seguirá seu improviso. O ultimato é uma garrafa de champanhe - é preciso tempo para gelar. Champanhe quente é a pior ressaca que existe. Casais não têm paciência para o congelador no momento da raiva, o canalha tem.

Conhece o corpo feminino para entender que as defesas vão terra abaixo na arena. Diferenças se esfarelam na fogueira.

Beijo brigado supera o beijo inocente. Beijo desculpado é a suprema carícia da língua."

19 maio, 2008

Em nome da poesia...



“O tempo passa rápido para os outros, não para vocês.
O tempo está vivo em vocês. Minucioso. Detalhista. Obcecado.
É como ficar o dia inteiro em casa. E, de repente, perceber que anoiteceu.
‘Já anoiteceu’ é uma das expressões mais bonitas. Significa que não controlamos as horas.
Casar é anoitecer. É quase perguntar: ‘Como chegamos aqui?’”


Fabrício Carpinejar